Nov 4

Protocolos Práticos de POCUS na Emergência: Guia Passo-a-Passo

Este artigo tem fins informativos e educacionais. As recomendações específicas devem ser adaptadas ao contexto local e às regulamentações de cada sistema de saúde. Consulte sempre as directrizes completas para informação detalhada.
Depois de compreender porque POCUS é essencial na paragem cardíaca, é tempo de dominar o "como". Este guia prático baseia-se nas Directrizes ERC 2025 e fornece um protocolo passo-a-passo para integrar o POCUS de forma segura e eficaz durante a ressuscitação.

1. Timing: Quando Realizar o POCUS

1.1. Durante a Paragem Cardíaca

Momento Ideal: Durante as pausas de verificação de ritmo
  Frequência: Preferencialmente a cada 2 minutos
  Duração máxima: Inferior a 10 segundos
  Integração: Simultânea com verificação de pulso e ritmo

 Regra de Ouro: Nunca interrompa compressões torácicas de alta qualidade apenas para realizar POCUS. A ecografia é complementar, não substitui a RCP.

1.2. Quando Priorizar POCUS

Considere POCUS precoce quando:
  Ritmo não-desfibrilhável (assistolia/AESP)
  Suspeita de causa mecânica (traumatismo, cirurgia recente)
  Ausência de resposta a terapêutica standard
  Contexto clínico sugere causa específica (embolia, tamponamento)

2. Protocolo Técnico: Janelas Ecográficas

2.1. Janela Subxifoide (Primeira Escolha)

Porquê escolher:
  Não interfere com compressões torácicas
  Permite visualização durante RCP
  Acesso fácil e rápido

Técnica:

  Sonda posicionada imediatamente abaixo do apêndice xifoide
  Apontar em direcção ao ombro esquerdo
  Angulação de 15-30 graus
  Profundidade: 15-20 cm

O que procurar:

  Presença/ausência de actividade cardíaca (contractilidade)
  Derrame pericárdico (halo anecoico ao redor do coração)
  Tamanho relativo dos ventrículos (VD vs VE)
  Colapso de câmaras (tamponamento)

2.2. Janela Paraesternal (Alternativa)

Quando usar:
  Acesso subxifoide limitado (obesidade, cirurgia abdominal)
  Necessidade de melhor visualização de estruturas específicas

Técnica:

  Sonda no 3º-4º espaço intercostal, junto ao esterno esquerdo
  Marcador apontando para ombro direito (eixo longo)
  Ou para ombro esquerdo (eixo curto)

Limitação:

Pode interferir ligeiramente com compressões se não coordenada adequadamente.

2.3. Janela Apical (Complementar)

Uso específico:
  Avaliação mais detalhada pós-ROSC
  Quando outras janelas inadequadas

Técnica:
  Sonda no ápex cardíaco (5º espaço intercostal, linha hemiclavicular)
  Marcador apontando para axila esquerda

3. Achados Críticos a Identificar

3.1. Sinais de Actividade Cardíaca

Presente:
  Movimento das válvulas
  Contractilidade ventricular (mesmo que mínima)
  Alteração de tamanho das câmaras

Ausente:
  Coração imóvel ("standstill")
  Sem movimento valvular
  Pior prognóstico (mas não absoluto)

3.2. Causas Reversíveis - Os "4 Hs e 4 Ts"

Tamponamento:
  Líquido pericárdico (anecoico)
  Colapso diastólico do VD
  VE pequeno e hiperdinâmico
  Acção: Pericardiocentese urgente

Pneumotórax Hipertensivo:
  Ausência de deslizamento pleural ("lung sliding")
  Ausência de linhas B
  Ponto pulmonar pode estar presente
  Acção: Toracostomia com dedo/agulha

Embolia Pulmonar:
  Dilatação do ventrículo direito (VD/VE > 1:1)
  Septo interventricular rectificado ("D-shape")
  VE pequeno e hiperdinâmico
  Acção: Considerar trombólise

Hipovolemia:
  Ventrículo esquerdo colapsado ("kissing walls")
  Veia cava inferior estreita (<1,5 cm)
  Hipercontractilidade (paradoxal)
  Acção: Reposição volúmica agressiva

4. Protocolos de Avaliação Rápida

As Directrizes ERC 2025 não impõem um protocolo único, reconhecendo que diferentes contextos podem beneficiar de abordagens distintas. Há dois protocolos que se destacam na prática actual.

4.1. Protocolo FEEL (Focused Echocardiographic Evaluation in Life support)

Contexto ideal: Paragem cardíaca intra-hospitalar

O protocolo FEEL foi desenvolvido especificamente para integração no suporte avançado de vida, sendo particularmente útil em ambientes hospitalares onde há mais espaço, melhor iluminação e equipas maiores.
Duração total: <10 segundos

Sequência FEEL:

  Segundo 1-3: Posicionar sonda subxifoide
  Segundo 4-7: Visualizar e avaliar:
        Actividade cardíaca presente?
        
Derrame pericárdico?
        Tamanho VD vs VE?
  Segundo 8-10: Decisão clínica e remoção da sonda

Vantagens do FEEL:
Protocolo bem estabelecido e estudado
Integração fácil nas pausas de ritmo
Foco nas causas mais comuns
Formação amplamente disponível

Limitações:

⚠️ Requer condições razoáveis de trabalho
⚠️ Pode ser desafiante em ambientes caóticos
⚠️ Menos adaptável a situações pré-hospitalares

4.2. Protocolo CASA (Cardiac Arrest Sonographic Assessment)

Contexto ideal: Paragem cardíaca extra-hospitalar (mas aplicável em qualquer contexto)

O protocolo CASA foi desenvolvido pensando nas condições adversas do pré-hospitalar: espaço limitado, movimento, iluminação inadequada e equipas reduzidas. É mais simples e adaptável que o FEEL.

Duração total: <10 segundos

Sequência CASA:
  Segundo 1-2: Posicionar sonda (subxifoide preferencial)
  
Segundo 3-8: Avaliar uma questão de cada vez:
        C - Cardiac activity (Actividade cardíaca)?
        A - Arrest cause (Causa da paragem)? (se óbvia)
        S - Standstill (Paragem completa)?
        A - Action (Acção necessária)?
  Segundo 9-10: Decisão e remoção

Vantagens do CASA:
✅ Mais simples e intuitivo
✅ Adaptável a condições adversas
✅ Foco progressivo (se não há actividade, não procura causas)
✅ Ideal para operadores com menos experiência
✅ Melhor para contextos caóticos
✅ Mais rápido de executar sob pressão

Aplicação Prática do CASA:

  Passo C (Cardiac):
        Há algum movimento cardíaco?
             SIM  continua para A
             NÃO  standstill confirmado, ponderar término

  Passo A (Arrest cause):
        Causa óbvia visível? (tamponamento, pneumotórax, VD dilatado)
            SIM  tratar causa
            NÃO  continuar RCP standard

  Passo S (Standstill):
        Confirmar ausência total de actividade
        Informar equipa do achado

  Passo A (Action):
        Que acção tomar baseado nos achados?
        Comunicar claramente à equipa

4.3. FEEL vs CASA: Qual Escolher?

Não há "melhor" protocolo absoluto - há o protocolo mais adequado ao seu contexto:
Característica FEEL CASA
Contexto ideal Intra-hospitalar Extra-hospitalar
Complexidade Moderada Simples
Tempo formação Maior Menor
Condições adversas Mais desafiante Mais robusto
Estrutura Fixa Adaptável
Evidência Mais estudos Estudos crescentes
Curva aprendizagem Mais longa Mais curta
Recomendação Prática:
  Serviços de Urgência/UCI: FEEL (condições controladas)
  INEM/Pré-hospitalar: CASA (adaptabilidade)
  Profissionais iniciantes: CASA (mais simples)
  Profissionais experientes: Ambos (flexibilidade)

O Mais Importante:

Escolha UM protocolo, domine-o, e use-o consistentemente. A familiaridade com um protocolo é mais valiosa que conhecimento superficial de vários.

Checklist Mental Rápida (Adaptável a Ambos)

Durante cada pausa de ritmo:
  Coração a mexer? (Sim/Não)
  Líquido ao redor? (Tamponamento?)
  VD dilatado? (Embolia?)
  VE colapsado? (Hipovolemia?)

5. Aplicação em Diferentes Contextos

5.1. Paragem Cardíaca Extra-Hospitalar

Desafios:
  Iluminação inadequada
  Espaço limitado
  Movimento/transporte
  Menos recursos humanos
  Condições meteorológicas adversas

Soluções:
  Equipamento portátil robusto e à prova de água
  Treino em condições adversas (simulação outdoor)
  Protocolo CASA (mais adaptável e simples)
  Integração no algoritmo pré-hospitalar
  Operador dedicado quando possível

Protocolo Recomendado: CASA
O protocolo CASA foi desenvolvido precisamente para estas condições, oferecendo:
   Avaliação progressiva (para se não há actividade, não perde tempo)
  Maior flexibilidade (adaptável ao caos)
  Mais rápido sob pressão
  Comunicação mais simples com equipa reduzida

Dica Prática:
Em contexto pré-hospitalar, priorize confirmar presença/ausência de actividade cardíaca. A identificação de causa específica é secundária.

5.2. Paragem Intra-Hospitalar

Vantagens:
  Melhor iluminação e espaço
  Equipamento fixo disponível
  Equipa maior e multidisciplinar
  Acesso a recursos adicionais

Protocolo:
  Protocolo FEEL (mais estruturado e completo)
  Operador de POCUS dedicado
  Integração no algoritmo de paragem
  Comunicação clara dos achados a toda a equipa
  Possibilidade de janelas ecográficas múltiplas

Protocolo Recomendado: FEEL
O ambiente hospitalar permite usar o protocolo FEEL mais detalhado:
  Tempo ligeiramente maior para avaliação completa
  Melhor identificação de causas específicas
  Equipamento de maior qualidade
  Possibilidade de segunda opinião rápida

Dica Prática: No hospital, use o tempo das pausas de ritmo para avaliação mais completa. Considere todas as janelas se a subxifoide for inadequada.

5.3. Contexto Pediátrico

Adaptações necessárias:
  Sondas de maior frequência (pode usar linear)
  Ajuste de profundidade
  Anatomia diferente
  Causas específicas (cardiopatias congénitas)

6. Pós-Ressuscitação: Avaliação Completa

Após retorno à circulação espontânea (ROSC).

Avaliação Ecocardiográfica Estruturada:

1. Função Ventricular:
     
Fracção de ejecção VE (visual)
      Função VD
      Alterações segmentares (enfarte?)

2. Válvulas:
      Insuficiências significativas
      Estenoses

3. Pericárdio:
      Derrame residual
      Sinais de constrição

4. Veia Cava Inferior:
      Diâmetro e variação respiratória
      Estado volémico

5. Aorta:
      Dilatação da raiz
      Dissecção?

7. Armadilhas a Evitar

7.1. Erros Comuns

Pausas prolongadas: Compressões > imagens
Interpretação prematura: Confirmar achados
Ignorar contexto clínico: POCUS não é isolado
Técnica inadequada: Formação é essencial
Equipamento mal preparado: Verificar antes

7.2. Limitações do POCUS

  Qualidade de imagem: Obesidade, enfisema, ar subcutâneo
  Experiência do operador: Curva de aprendizagem
  Contexto: Ambiente caótico pode dificultar
  Tempo: Pressão para decisões rápidas

8. Integração no Algoritmo de RCP

8.1. Algoritmo com POCUS Integrado

PARAGEM CARDÍACA DETECTADA
 
Iniciar RCP de alta qualidade
 
Ritmo desfibrilhável?   Sim (Choques + RCP)
 

Não (Assistolia/AESP)
 
RCP contínua + Adrenalina
 
Pausa de ritmo (2 min)    POCUS <10s
[FEEL intra-hospitalar / CASA extra-hospitalar]
 
Causa reversível identificada?
 
Sim
 
Tratar causa (Pericardiocentese, Toracostomia, Fluidos, etc)
 
Não
 
Continuar RCP standard
(Reavaliar a cada 2 minutos com POCUS)

8.2. Decisão de Protocolo por Contexto

Ambiente Hospitalar (Urgência/UCI):
Pausa de ritmo    FEEL (10s)
 
Actividade?     Derrame?    VD/VE?
 
Decisão + Acção
Ambiente Pré-Hospitalar (INEM/Ambulância):
Pausa de ritmo    CASA (10s)
 
Cardiac activity?    Se sim    Arrest cause?
 
Standstill?    Action!
Flexibilidade:
  Profissionais familiarizados com ambos podem escolher conforme situação
  Em dúvida, use o protocolo com que treinou mais
  O importante é ter UM protocolo consistente

9. Documentação

Registar sempre:
  Achados do POCUS
  Decisões tomadas com base nos achados
  Intervenções realizadas
  Evolução após intervenção

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Artigo Anterior: POCUS em Paragem Cardíaca: Porquê e Como Usar - Relembre a importância científica e as recomendações das directrizes.

Próximo Artigo: Formação em POCUS: Como Dominar a Técnica que Salva Vidas - Descubra onde e como obter formação certificada para dominar o POCUS de forma segura e eficaz.

 
Índice Completo da Série

  1. Directrizes ERC 2025: O Que Mudou na Ressuscitação - Contexto geral das novas directrizes

  2. POCUS em Paragem Cardíaca - Fundamentos e importâncias

  3. Protocolos Práticos de POCUS na Emergência - Guia técnico passo-a-passo   está aqui

  4. Formação em POCUS: Como Dominar a Técnica - Educação e competências

 Recursos

Directrizes Completas ERC 2025 - Guidelines on Cardiopulmonary Resuscitation