Nov 4

POCUS em Paragem Cardíaca: Porquê e Como Usar

Este artigo tem fins informativos e educacionais. As recomendações específicas devem ser adaptadas ao contexto local e às regulamentações de cada sistema de saúde. Consulte sempre as directrizes completas para informação detalhada.
Imagine poder ver directamente o coração de um doente em paragem cardíaca, identificar a causa em segundos e ajustar imediatamente o tratamento - tudo isto à cabeceira, sem interromper significativamente as manobras de reanimação. Esta já não é uma visão futurista: é a realidade que o POCUS (Point-of-Care Ultrasound) trouxe à medicina de emergência.

As Directrizes ERC 2025 elevaram o POCUS a recomendação-alvo, reconhecendo formalmente o seu papel transformador na abordagem à paragem cardíaca. Mas porquê esta atenção especial? E como usar esta ferramenta de forma eficaz e segura?

1. O que é o POCUS?

O POCUS, ou ecografia à cabeceira do doente, é uma técnica de imagiologia que permite aos profissionais de saúde obter informações diagnósticas críticas em tempo real. Ao contrário da ecocardiografia tradicional realizada no laboratório, o POCUS é:

  Imediato: Realizado no local onde o doente se encontra
  Focado: Responde a questões clínicas específicas
  Integrado: Parte integrante da avaliação clínica
  Repetível: Pode ser realizado quantas vezes necessário

2. Por que o POCUS é revolucionário?

2.1. Identificação Rápida de Causas Reversíveis

A paragem cardíaca tem frequentemente causas tratáveis - os famosos "4 Hs e 4 Ts". O POCUS permite identificá-las em segundos:

  Tamponamento Cardíaco: A visualização directa de líquido pericárdico a comprimir o coração pode levar a uma pericardiocentese salvadora.
  Pneumotórax Hipertensivo: A ausência de deslizamento pleural e o colapso pulmonar são rapidamente identificáveis, orientando para toracostomia imediata.
  Embolia Pulmonar Maciça: A dilatação do ventrículo direito sugere este diagnóstico, podendo orientar para terapêutica trombolítica.
  Hipovolemia Severa: Um ventrículo esquerdo colapsado ("kissing walls") e veia cava inferior estreita indicam necessidade urgente de reposição de volume.

2.2. Orientação da Decisão Clínica

Durante a ressuscitação, cada decisão conta. O POCUS fornece informação objectiva que ajuda a decidir:

  Continuar ou parar a RCP:
A presença de actividade cardíaca tem valor prognóstico
  Tipo de intervenção necessária: Drenagem, descompressão, fluidos ou fármacos específicos
  Qualidade das compressões: Verificação se estão a gerar fluxo sanguíneo adequado
  Necessidade de ECMO: Identificação precoce de casos que podem beneficiar de suporte circulatório mecânico

2.3. Valor Prognóstico Comprovado

Estudos recentes demonstram os seguintes resultados:

  Doentes com actividade cardíaca visível no POCUS inicial têm 4 vezes mais probabilidade de recuperar circulação espontânea
  Taxa de retorno à circulação espontânea de 52,1% versus 12,3% quando há actividade cardíaca presente versus ausente
  Sobrevida até à alta hospitalar de 16,7% versus 2,8% nos doentes com actividade cardíaca detectável

Estes números são extraordinários em ressuscitação, onde cada ponto percentual de sobrevida tem um grande impacto.

3. Recomendações das Directrizes ERC 2025

As directrizes estabelecem princípios claros para o uso seguro e eficaz do POCUS:

3.1. Operadores Qualificados

O POCUS deve ser realizado apenas por profissionais com formação específica. A interpretação incorreta pode levar a decisões clínicas erradas. A competência requer:

  Conhecimento da anatomia ecográfica
  Treino em reconhecimento de padrões normais e patológicos
  Experiência em optimização de imagens
  Capacidade de integrar achados no contexto clínico

3.2. Interrupções Mínimas

As compressões torácicas de alta qualidade continuam a ser o pilar da RCP. As directrizes são claras:

  Pausas para POCUS devem ser inferiores a 10 segundos
  A ecografia deve ser integrada às pausas de verificação de ritmo
  Posição subxifoide é preferível para minimizar interferência

3.3. Complemento, Não Substituto

O POCUS nunca substitui a avaliação clínica. Deve ser usado em conjunto com:

  História clínica e circunstâncias da paragem
  Exame físico
  Análises laboratoriais (lactato, gasometria)
  Monitorização hemodinâmica quando disponível

4. Aplicações Práticas

4.1. Em Adultos

O POCUS é particularmente útil em:

  Paragem cardíaca com ritmo não-desfibrilhável (assistolia/AESP)
  Identificação de causas mecânicas tratáveis
  Orientação de procedimentos invasivos

4.2. Em Pediatria

As directrizes também recomendam POCUS pediátrico para:

  Distinção entre tipos de choque (cardiogénico, hipovolémico, distributivo)
  Avaliação da resposta à terapêutica
  Orientação da administração de fluidos e inotrópicos

4.3. Pós-Ressuscitação

Após retorno à circulação espontânea, o POCUS permite:

  
Identificação da causa da paragem (enfarte, dissecção aórtica)
  Avaliação da função cardíaca
  Orientação da terapêutica hemodinâmica

5. A Realidade nos Serviços

Apesar do potencial, estudos recentes mostram que o POCUS ainda é subutilizado, principalmente devido a:

  
Percepção de falta de competência
  Ausência de protocolos institucionais
  Equipamento não disponível imediatamente

6. Próximo Passo: Aprender a Técnica

Compreendido o "porquê", é tempo de dominar o "como".

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Próximo Artigo: Protocolos Práticos de POCUS na Emergência: Guia Passo-a-Passo - Aprenda passo-a-passo como realizar POCUS durante a RCP, incluindo janelas ecográficas e achados a procurar.

 
Índice Completo da Série

  1. Directrizes ERC 2025: O Que Mudou na Ressuscitação - Contexto geral das novas directrizes

  2. POCUS em Paragem Cardíaca - Fundamentos e importâncias   está aqui

  3. Protocolos Práticos de POCUS na Emergência - Guia técnico passo-a-passo

  4. Formação em POCUS: Como Dominar a Técnica - Educação e competências

 Recursos

Directrizes Completas ERC 2025 - Guidelines on Cardiopulmonary Resuscitation