Oct 4 / José Mariz

Trauma por Agressão com Faca: Avaliação de um Caso Clínico

Descubra como a avaliação POCUS foi crucial, destacando a importância do diagnóstico precoce e intervenção rápida.
Este caso clínico é apresentado com o recurso à estrutura dos 4 Is do POCUS: Identificação, Imagem, Interpretação e Integração. 

Identificação

Homem de 46 anos.
Vítima de agressão com faca de cozinha no tórax e abdómen.
A equipa de socorro pré-hospitalar chega ao local do incidente e observa a vítima de acordo o método ABCDE de trauma:

A: Acordado, completa frases e responde a questões sem alt. da fonação.
B: Expansão simétrica, eupneico, SatO2 com O2 a 6L/min 100% FR 16 cpm; AP e percussão torácica inocentes.
C: Pálido, sudorético, extremidades frias TA 70/50 mmHg FC 95 bpm.
D: Mobiliza os 4 membros.
E: 4 ferimentos inciso-contusos na axila esquerda (~1.5 cm; 1 ferida inciso contusa na face medial proximal do braço esquerdo (1 cm); uma ferida inciso-contusa no 6º EIC esquerdo, inframamilar (2 cm); 1 ferida inciso-contusa na região epigástrica (1.5 cm); sangue nos membros inferiores, sem identificar ferida.

Imagem

Foi feito POCUS no local e obtidas as seguintes janelas, a par de obtenção com sucesso de 2 acessos venosos nos membros superiores:
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Interpretação

Qual é o tipo de choque mais provável neste doente?

O tipo de choque mais provável neste doente é o Obstrutivo por Tamponamento.

O diagnóstico da causa de choque permanece um diagnóstico desafiante, ainda que a compreensão da fisiopatologia do choque e dos estados de hipoperfusão tecidular tenha chegado ao nível da mitocôndria. No entanto, os estados de choque apresentam-se clinicamente como uma síndrome, com achados semiológicos que em grande parte dos casos são comuns às diferentes etiologias.

Classicamente, os estados de choque são classificados em 4 tipos : hipovolémico, cardiogénico, obstrutivo e distributivo. E estes tipos não são exclusivos, podendo estar presentes no mesmo doente mais do que um dos tipos em simultâneo. A epidemiologia dos tipos de choque varia consoante o ambiente clínico que estamos a estudar. Por exemplo, em coortes de doentes referenciados com Choque a um Hospital com valência avançada de trauma, o tipo de choque hipovolémico (hemorrágico) tem uma preponderância maior relativamente a Hospitais sem essa valência.

Neste caso em particular, estamos presentes a uma vítima de trauma por arma penetrante no tórax e abdómen. A abordagem ABCDE de trauma é crucial, focando o problema no sistema Circulatório. Os ferimentos são a ponta de um iceberg clínico, o qual pela semiologia não é possível entender a sua dimensão. Curiosa esta analogia, pois se o Titanic tivesse usado a tecnologia de sonar, provavelmente não se teria afundado. Perante esta vítima em particular, as hipóteses que se colocam para o tipo de choque são, por ordem de probabilidade a partir da apresentação clínica:

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  • Hipovolémico: Hemotórax e/ou Hemoperitoneu.
  • Obstrutivo: Hemopericardio com tamponamento e/ou Pneumotórax hipertensivo.
  • Cardiogénico: Laceração do ventrículo esquerdo com falência de bomba.
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Pela clínica, com exceção talvez do pneumotórax hipertensivo, não poderíamos afirmar ou excluir com segurança o que se estava operando na vítima.

E o que é o que o POCUS nos traz?

Foi realizado um protocolo eFAST. Verificamos que nas imagens dos Ápex do Pulmão se verifica padrão A, que exclui com segurança o Pneumotórax, pelo menos em grau de magnitude que cause o estado de hipotensão observado; no entanto, esta era uma das hipóteses menos prováveis, perante uma mecânica ventilatória aparentemente inalterada e achados inocentes na percussão torácica e na auscultação pulmonar.

Nas imagens do Flanco Esquerdo, verificamos no near field da janela ecográfica, uma imagem hiperecóica, podendo corresponder a enfisema subcutâneo, e dificuldade em observar os movimentos da linha pleural; no far field observa-se imagem anecóica de pequenas dimensões, podendo corresponder a hemotórax de pequeno volume; no entanto, as dimensões não correspondem a uma quantidade de hemorragia ou pneumotórax compatíveis com as alterações hemodinamicas observadas neste doente. Observa-se ausência de líquido livre nos espaços espleno-diafragmático e espleno-renal.

No Flanco Direito, observa-se a base direita do pulmão livre, bem como ausência de líquido livre no Espaço Hepato-Renal (ou Loca de Morrison).

E é na Janela Subcostal que se observam as imagens mais significativas.

Observa-se líquido livre no pericárdio, com comprometimento do enchimento diastólico do ventrículo direito, mas mantendo a sua contratilidade hiperdinâmica. O Ventrículo esquerdo apresenta boa contratilidade, pelo que a falência cardiogênica torna-se assim uma hipótese remota. A janela de visualização da Veia Cava Inferior (VCI) era de má qualidade, não se podendo tirar conclusões seguras da sua dinâmica respiratória.

Com estes achados estamos assim perante hemopericárdio com grande probabilidade de tamponamento.

Integração

Qual foi a evolução do caso?

No imediato, foi administrado bólus de cristaloide de 500 cc, com melhoria muito rápida (menos de 5 minutos após o início da infusão rápida) do perfil tensional e da perfusão periférica. Foi transportado para o Hospital sem valência de cirurgia cardiotorácica, tendo sido aí admitido cerca de 45 minutos após o incidente. Na admissão na Sala de Emergência (SE) desse Hospital, o doente apresentava melhoria dos parâmetros hemodinâmicos, bem como dos sinais ecocardiográficos de enchimento e contratilidade do ventrículo direito com ligeiro aumento do derrame pericárdico (imagens não disponíveis realizadas na SE). Foi possível realizar estudo com Tomografia Axial Computorizada toraco-abdomino-pélvica, que identificou: pequena contusão pulmonar com pequeno hemotórax localizado na base esquerda e fina lâmina de pneumotórax (limitada anteriormente ao coração); hemopericárdio; sem outras lesões, nomeadamente no abdómen e pélvis.

O doente foi transportado 6 horas depois do incidente para Unidade hospitalar diferenciada em Cirurgia Cardiotorácica, tendo entrado na SE desse Hospital em instabilidade Hemodinâmica, e daí transportado directamente para o Bloco Operatório, onde foi constatada laceração do pericárdio e do ventrículo esquerdo, tendo as lesões sendo corrigidas. O doente evoluiu bem e à data actual encontra-se sem restrições na sua actividade.

O que poderia ter corrido melhor?

A partir do quadro clínico apresentado com a avaliação POCUS efectuada, o transporte directo do local do incidente para Unidade Hospitalar diferenciada em Cirurgia Cardiotorácica, poderia ter obviado atrasos que em outras circunstâncias poderiam ter sido fatais. Talvez o equivalente aos 30 segundos que poderiam ter salvo o Titanic de embater contra o iceberg.
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Referências:

Successful Diagnosis of Penetrating Cardiac Injury Using Surgeon-Performed Sonography. Patel, et al. Ann Thorac Surg 2003;76:2043–7). doi: 10.1016/s0003-4975(03)01057-9

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Para uma melhor compreensão dos pilares “Identificação, Imagem, Interpretação e Integração”, que estruturam a análise sistemática dos casos clínicos, em “Modelo dos 4 Is do POCUS” apresento esta abordagem. Estes princípios não só oferecem soluções adaptadas a cada cenário, mas também facilitam a comunicação entre diferentes especialidades.