Jul 15 / José Mariz

O conceito de tolerância a fluidos: onde POCUS traz a fisiologia de Guyton à cabeceira do doente

Este post é um comentário ao artigo The emerging concept of fluid tolerance: A position paper (1) na sequência do post escrito anteriormente por mim onde disse que “O desenvolvimento dos aparelhos portáteis com aplicações que vão além do modo 2D, criou uma nova era de POCUS hemodinâmico ao alcance de todos. Mas é necessário muito estudo e treino, sem esquecer as leis da física, a integração dessas leis nos sistemas biológicos (no espírito do Guyton), e, mais importante, avaliar os doentes na globalidade como já fazemos bem.”

No entanto, precisamos de refinar toda a matriz baseada na fisiologia, no que diz respeito ao tratamento dos doentes em choque. O artigo publicado recentemente no Journal of Critical Care por Kattan et al (1), vem muito a propósito e traz uma revolução na abordagem tradicional do choque baseada no conceito de “fluid responsiveness", e propõem uma definição alternativa e operacional de “fluid tolerance”. O artigo tem como último autor Philippe Rola, um dos gurus do protocolo VEXUS (2).

Há aspectos que quero realçar onde POCUS entra nesta definição de tolerância a fluidos de forma a torná-la operacional.

Os autores tratam de definir os sistemas orgânicos que mais terão a sofrer as consequências da sobrecarga de volume na ressuscitação do doente em choque, e aí, antecipam o importante papel que POCUS pode ter na avaliação clínica à cabeceira do doente (em jeito de alerta spoiler anunciam artigo para breve onde POCUS será abordado em maior profundidade na definição de tolerância a fluidos).

Há um grande ênfase na sistematização de onde devemos avaliar clinicamente, e de forma o menos invasiva possível, o doente em choque na fase de ressuscitação.

Em contraponto à tolerância de fluidos, os autores apontam para dados em que 30% dos doentes mostraram ausência de responsividade a fluidos antes da ressuscitação nos Cuidados Intensivos, numa subanálise do ensaio ANDROMEDA-SHOCK (3).

Daí que a clínica à cabeceira do doente seja uma das pedras de toque no tratamento dos doentes em choque, sobretudo na sua apresentação inicial no Serviço de Urgência (SU), dentro da janela de oportunidade a que os autores se referem (Figura 1).

Figura 1: Janela de oportunidade no tratamento do choque, tendo como base os conceitos de tolerância a fluidos, stress venoso e lesão de orgãos (a partir de Kattan et al (1))

A janela de oportunidade é uma janela de avaliação clínica à cabeceira do doente e que contempla o ramo direito do sistema hemodinâmico, o venoso, historicamente negligenciado na ressuscitação. A divisão anatómica por sistemas é fundamental, e daí decorre a divisão entre órgãos não encapsulados versus órgãos encapsulados, sendo estes o cérebro e o rim, os quais sofrem mais os efeitos da congestão venosa. A definição de tolerância a fluídos surge assim como o nível que o doente pode tolerar de administração de fluídos sem causar disfunção de órgão. Não vou fazer aqui uma revisão sistemática do artigo, uma vez que este deve ser lido na íntegra. Vou antes enquadrá-lo com alguns exemplos de testes à cabeceira do doente da minha própria experiência (com ênfase em POCUS) e no efeito da região anatómica no stress venoso, em doentes que se apresentaram sindromicamente em choque no SU, remetendo para algumas secções do artigo:

Órgãos não encapsulados: Pulmão e Coração

Pulmonary: oxygen requirements, lung ultrasound (B-lines), pleural effusions, elevated pulmonary capillary wedge pressure or echographic signs of elevated left atrial pressure.

A juventude traz diminuição do risco na maior parte dos scores clínicos, no entanto, o facto de ser jovem não dá a capacidade para negligenciar a tolerância a fluídos, mesmo raciocinando numa perspectiva Bayesiana de probabilidades pré-teste. Um jovem de 41 anos de idade, (muito jovem, mais jovem do que o jovem que escreve este post!), é admitido no SU, sem qualquer antecedente conhecido, onde já se teria dirigido duas vezes pelo mesmo quadro, por dispneia progressiva para esforços, sem clínica evidente de hipervolémia, referindo diminuição do débito urinário e apresentando-se hipotenso na corrente admissão no SU.O reflexo de realizar POCUS sobrepôs-se à fluidoterapia, e obtiveram-se as seguintes imagens:

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O quadro de insuficiência cardíaca aguda foi depois esclarecido em relação à ingestão abusiva de álcool, não evidente na admissão, e a estratégia de diurese estabelecida no SU.

Cardiovascular - lack of fluid responsiveness, D-shaped septum, right to left ventricular (RV:LV) ratio > 1, markers of either systolic or diastolic dysfunction, etc .

A clínica do choque obstrutivo sobrepõe-se muitas vezes à de outras causas de choque, no entanto, o reflexo imediato de hipotensão>>>fluidos na presença de obstrução das cavidades direitas pode ter consequências fatais. Vejam o caso de uma jovem de 18 anos, que pela segunda vez recorre ao SU por dor torácica de características pleuríticas, uma história recente sugestiva de infecção respiratória superior, e que na admissão se apresenta com queixas de dificuldade em se manter em ortostatismo e evidencia hipotensão no exame objectivo. O reflexo de administrar fluídos foi felizmente acompanhado com o reflexo de realizar POCUS, e obtida a imagem na janela paraesternal de curto-eixo:

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O diagnóstico de TEP maciço foi feito atempadamente e decidida a administração de trombolítico (em detrimento de uma estratégia de fluidos), e POCUS na pós-trombólise a correlacionar-se com a melhoria sintomática e do perfil tensional da doente:

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Órgãos encapsulados: Cérebro e Rim

Cerebral - acute injury

A encefalopatia congestiva dá os seus primeiros passos no jargão da medicina clínica, sendo que pela natureza “encapsulada” do cérebro, a avaliação directa do stress venoso na circulação cerebral é um desafio à prática e investigação clínicas. Por outro lado, o gestalt clínico da avaliação da disfunção cognitiva aguda e do delirium sem o recurso a escalas e métodos sistemáticos, apresenta uma sensibilidade muito baixa, principalmente no SU. Muito poderia falar sobre este assunto (sou Guyton geek e delirium geek), pelo que fica para futuros posts um desenvolvimento deste tema com um foco “sono-integrado”. É frequente fazer a avaliação objectiva do doente crítico com o qSOFA, que engloba a Escala de Coma de Glasgow (ECG). Mas faltam dados que calibrem as sensibilidades e especificidades da ECG em todo o espectro da disfunção cognitiva associada a estados de choque. Uma abordagem sensata passa por compreender o problema (não confiar cegamente no nosso gestalt!) e aplicar escalas dirigidas à avaliação do delirium, a par dos scores como o qSOFA. Se queremos aplicar o conceito de tolerância a fluidos no sentido de ser “precoces”,  escalas específicas de avaliação de delirium no SU devem ser adoptadas. Uma das minhas escalas predilectas é a bCAM (Figura 2), mas podem consultar uma revisão de outras escalas que se encontram validadas para aplicar no SU (4).

Figura 2: Algoritmo de aplicação do Brief Confusion Assessment Method. Copyright © 2012. Vanderbilt University.

Renal - stress biomarkers rise, oliguria

O rim é um órgão encapsulado retroperitoneal, e cuja lesão aguda tem implicações profundas no desfecho do doente em choque, em muito relacionado com a sua maior sensibilidade à congestão venosa. Os marcadores habituais baseados no débito urinário e valores séricos de creatinina, apresentam um desfasamento tardio considerável em relação a outros sinais mais precoces de disfunção, e que podem ser medidos com ecografia. POCUS pode orientar o tratamento diurético, mostrando sinais de descongestão que precedem os habituais marcadores bioquímicos (e daí ajudando na estratégia mais assertiva e objetiva de tratamento), evidenciado nas seguintes imagens de um doente em plano de “des-ressuscitação” por choque séptico nas janelas dos vasos renais interlobares:


Antes dos diuréticos:
Depois dos diuréticos:

A mensagem é forte:

Tão importante como abrir uma boa janela de imagem em POCUS, é abrir a janela da oportunidade na ressuscitação do doente em choque. O caminho lógico (plausível do ponto de vista biológico) é a integração de dados clínicos estratificando o risco, o uso de testes à cabeceira do doente que avaliem o stress no sistema venoso, tendo como matriz de actuação a tolerância a fluídos, e daí explorar a relação entre a hemodinâmica, lesão de órgãos e outcomes do doente. E não há dúvidas que POCUS é uma ferramenta crucial para este entendimento. Em breve, falarei mais sobre estes assuntos sempre como um Guyton geek!

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Referências:

(1) Kattan E, Castro R, Miralles-Aguiar F, Hernández G, Rola P. The emerging concept of fluid tolerance: A position paper. J Crit Care. 2022 Jun 2;71:154070. doi: 10.1016/j.jcrc.2022.154070. Epub ahead of print. PMID: 35660844. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35660844/

(2) Beaubien-Souligny W, Rola P, Haycock K, Bouchard J, Lamarche Y, Spiegel R, Denault AY. Quantifying systemic congestion with Point-Of-Care ultrasound: development of the venous excess ultrasound grading system. Ultrasound J. 2020 Apr 9;12(1):16. doi: 10.1186/s13089-020-00163 w. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7142196/

(3) Kattan E, Ospina-Tascón GA, Teboul JL, Castro R, Cecconi M, Ferri G, Bakker J, Hernández G; ANDROMEDA-SHOCK Investigators. Systematic assessment of fluid responsiveness during early septic shock resuscitation: secondary analysis of the ANDROMEDA-SHOCK trial. Crit Care. 2020 Jan 23;24(1):23. doi: 10.1186/s13054-0202732-y. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6979284/

(4) José Mariz, Teresa Costa Castanho ,Jorge Teixeira ,Nuno Sousa and Nadine Correia Santos, Delirium Diagnostic and Screening Instruments in the Emergency Department: An Up-to-Date Systematic Review. Geriatrics 2016, 1(3), 22; https://www.mdpi.com/2308-3417/1/3/2