Jun 25 / José Mariz

A avaliação hemodinâmica não é um exclusivo do doente nos Cuidados Intensivos

Quando pensamos em Avaliação Hemodinâmica, logo nos vem à mente doentes em tal instabilidade que, se não forem tomadas medidas imediatas e muitas das vezes invasivas, o desfecho é fatal. E é certo que assim é em grande parte das vezes em ambiente hospitalar. No entanto, o conhecimento e a compreensão de vários estados hemodinâmicos associados a doentes aparentemente estáveis é uma realidade cada vez mais frequente, atendendo ao grau de comorbilidades e complexidade dos doentes crónicos que tantas vezes agudizam o seu estado. 

A Avaliação Hemodinâmica compreende também o estudo venoso que vai muito além da avaliação da Veia Cava Inferior (VCI). Falo de doentes em Insuficiência Cardíaca Congestiva (ICC), doentes com Lesão Renal Aguda (LRA) sobreposta ou não à Doença Renal Crónica (DRC) e/ou estados cuja etiologia é, muitas vezes, mal compreendida como o Síndrome Cardiorrenal (SCR). Aqui, abordarei os mais recentes avanços da Avaliação Hemodinâmica Não Invasiva no que respeita à avaliação venosa, não descurando, claro, a avaliação ecocardiográfica, ambas recorrendo ao Doppler pulsado. Darei mais ênfase às implicações diretas nos principais quadros congestivos como a insuficiência cardíaca e a insuficiência renal. Aspetos práticos dos aparelhos de ecografia também serão abordados, com especial enfoque nos novos aparelhos hand-held, que possuem valências de última geração. 

Quem faz Medicina de Urgência e Cuidados Críticos, de forma continuada há mais de uma década, sabe o esforço que um doente instável representa, quer do ponto de vista do doente em sofrimento, como do médico assistente em alerta máximo.  A prioridade é manter a perfusão dos órgãos e fazer-nos valer de tudo o que estiver à disposição para avaliar a qualidade dessa perfusão. No entanto, muitos dos parâmetros que avaliamos já indicam lesões bastante avançadas. Precisamos de algo que nos ponha alerta para prevenir e que nos sinalize a tempo de decidir quando intervir. E a ecografia cai bem nesses critérios.

Algumas das aplicações já são bem conhecidas, como os estados de hipoperfusão associados ao choque séptico. Outras aplicações são bem recentes, e mais no âmbito de avaliação de doentes estáveis com potencial de complicação, ou em doentes que, passada a estabilização, cabe depois monitorizar a sua recuperação. 

Neste artigo, vou abordar as várias aplicações da avaliação hemodinâmica não invasiva com recurso à ecografia, sem esconder que vou dar mais ênfase no que há de novo na avaliação do sistema venoso.

O Sistema Circulatório é um intrincado complexo de fatores interdependentes:

    1. O coração influencia a força e quantidade do sangue ejetado; 
    2. As artérias elásticas armazenam a energia durante a sístole e mantêm o fluxo sanguíneo durante a diástole; 
    3. As artérias musculares mantêm o tônus; 
    4. As arteríolas, capilares, e vênulas distribuem o sangue pelos diferentes órgãos; 
    5. As veias asseguram o retorno adequado do sangue ao coração.

 

Parece complicado. E é complicado. Vejamos o sistema circulatório composto por dois compartimentos, o venoso e o arterial e, para que ocorra fluxo entre quaisquer dois pontos no sistema, tem de haver uma diferença de energias entre eles.

O meu livro preferido no curso de Medicina (isto é coisa de geek) era o Guyton (na figura a “minha” edição por onde estudei e ainda estudo; não é de menos, esta edição sobreviveu na minha República em Coimbra!) (Fig. 1).

Figura 1.Textbook of Medical Physiology [4]

Vamos mais atrás e coloquemos isto na física pura e dura. A lei de Ohm, como todas as leis da física que nos governam, tem um poder imenso. A lei diz que, para um determinado condutor mantido à temperatura constante, a razão entre a tensão entre dois pontos e a corrente elétrica é constante. Essa constante é denominada de resistência elétrica. Damos um passo para um sistema biológico e podemos dizer que a lei de Ohm pode ser aplicada à hemodinâmica? Este post não é nada original, pois isto é o que está escrito em montes de sítios e textos de fisiologia do sistema circulatório. Ou seja, daqui passamos para a lei básica da hemodinâmica que é

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onde Q é o fluxo de sangue, ΔP é o gradiente de pressão (medido em mmHg) entre o ponto a jusante P1 (maior pressão) e o ponto a montante P2 (menor pressão) do vaso sanguíneo e R é a resistência (Fig. 2).

Figura 2. Relações entre pressão, resistência e fluxo de sangue [4]

Isto é a forma de colocar a avaliação hemodinâmica mais simples para quem pratica no terreno. No entanto, esquecemos a porção venosa do sistema circulatório. Daí que não seja assim tão simples. A verdadeira perfusão de um órgão não é, de facto, a pressão arterial média menos a pressão venosa central (o ΔP da equação acima), mas, antes, a pressão arteriolar pré-capilar menos a pressão na vênula pós-capilar. Na equação anterior, a PAM é geralmente acima de 90, enquanto que o gradiente na região capilar anda à volta de 35-40 mmHg (Fig. 3).

Figura 3. Pressões sanguíneas nas diferentes regiões do sistema circulatório


O impacto do aumento da pressão venosa é muito maior do que geralmente consideramos [3]. As pressões venosas elevadas vão reduzir assim a perfusão do órgão, causando disfunção e lesão do órgão, e tem sido associado especificamente a LRA e delirium pós-operatório. É de ficar a pensar: os dois órgãos mais afetados são encapsulados e sem grande hipótese de distensão - o rim com LRA e o cérebro com delirium.


Portanto, precisamos de uma avaliação que considere ambos os braços arterial e venoso do sistema. Não diminui a importância da avaliação da bomba e das resistências periféricas, simplificando a Lei de Ohm para o sistema circulatório. Avaliar a congestão venosa de forma mais precisa vem colmatar o que já se fazia bem, para fazer ainda melhor.

Choque circulatório: uma apresentação comum para várias realidades hemodinâmicas onde o Ecocardiograma faz a diferença

O eco-Doppler constitui a ferramenta ideal para a abordagem inicial do doente com instabilidade hemodinâmica. Para além de uma caracterização cardíaca morfológica e funcional, permite uma avaliação compreensiva do status hemodinâmico do doente crítico (geralmente é do doente crítico; ninguém pede um ecocardiograma com um doente estável e hipertenso!). No doente crítico, o eco-Doppler permite-nos calcular o Débito Cardíaco (DC) de forma “relativamente” fácil (habituem-se ao que acho fácil, preparem-se para a seguinte linha de ação) (Fig. 4.1).

Figura 4.1. Cálculo do débito cardíaco e das resistências vasculares periféricas por ecocardiograma Doppler [1]

De novo simplificamos o sistema biológico e aqui aplicamos leis geométricas. Considerando o corte seccional do trato de saída do Ventrículo Esquerdo (tsve) um círculo, a sua área é calculada por meio da fórmula (Dtsve/2)2 x π, onde Dtsve é o diâmetro do tsve medido em paraesternal eixo longo. A área seccional do tsve multiplicada pela integral tempo-velocidade do fluxo no tsve (ITVtsve), medida em incidência apical 5 câmaras no mesmo local que a medição do tsve, dá-nos o Volume de Ejeção  (VolEj). Por sua vez, o DC é obtido multiplicando o VolEj pela Frequência Cardíaca (FC). O índice cardíaco (IC) pode ser derivado dividindo o DC pela superfície corporal (SupCorp). Assim, temos (Fig 4.2):

Figura 4.2. Cálculo do débito cardíaco e das resistência vasculares periféricas por ecocardiograma Doppler [1]

O ecocardiograma permite, assim, uma avaliação cardíaca anatómica e funcional rápida, hemodinâmica, não invasiva, mas requer o estudo Doppler (color e pulsado). Por isso, é considerado avançado, um avanço às competências de modo de imagem bidimensional (2D). Tal estudo, que agora eu prefiro chamar integrado, pode fornecer dados de extrema importância para a compreensão dos mecanismos subjacentes à instabilidade hemodinâmica do doente, permitindo a instituição célere das medidas terapêuticas apropriadas. Claro que uma avaliação deste tipo requer treino e é considerada uma aplicação avançada. Eu avisei acima, o fácil aqui só é usado em termos de elegância de argumentação - a realidade é bem mais difícil de articular. Ou seja, é necessário o domínio da obtenção das janelas ecocardiográficas em 2D, bem como possuir um domínio do POCUS Torácico, que engloba a avaliação pulmonar e da VCI, e POCUS abdominal, com a identificação de líquido livre na cavidade intraperitoneal. No entanto, este tipo de avaliação é acessível a qualquer médico que tenha o seu foco no doente crítico, e uma vez que estes tipos de doentes são, infelizmente, comuns nos Hospitais, o treino e a integração dos conhecimentos podem ser feitos definindo bem os objetivos (número de casos para construir um portefólio e avaliação por experts ou mentores).

O que há de novo na avaliação hemodinâmica não invasiva?

O score Venous Excess Ultrasound (VExUS)

A medição da VCI em modo 2D isoladamente, tem limitações que a tem colocado de parte por muitos intensivistas e médicos dedicados à urgência/emergência. Eu não sou um desses, quer dizer, sou um dos médicos dedicados à urgência e emergência, mas que não pôs de parte a VCI e utilizo a sua avaliação frequentemente.


Já em outro post, em que eu proponho pensarmos Para onde vamos nas aplicações de POCUS na prática clínica?, falei da necessidade de conhecer bem o teste que estamos a aplicar para usarmos convenientemente o Odds Ratio. Uma VCI não dilatada e com variabilidade respiratória perante um derrame pericárdico quer dizer muita coisa, e uma VCI dilatada num doente em choque e com história conhecida de hipertensão pulmonar pouco pode ajudar a responder à questão se o doente vai responder a fluídos. Mas há grandes avanços na avaliação venosa, e estes avanços não puseram a VCI de lado. 


Ultimamente, a avaliação venosa tem ficado mais sofisticada com recurso do Doppler Pulsado das veias hepáticas, veias porta e veias renais. O famoso score VExUS [2] [3]. Sabemos que a doença cardíaca, a doença pulmonar e a hipervolémia são causas frequentes de congestão venosa. Assim, a insuficiência cardíaca esquerda, a regurgitação mitral, a doença pulmonar, a falência ventricular direita, a regurgitação tricúspide e o derrame pericárdico - todas essas situações podem ser detetadas por ecografia.


Da mesma forma que avaliamos o DC após uma avaliação morfológica e funcional do coração, a avaliação da congestão venosa inclui uma avaliação “morfológica” da volémia, da lesão renal aguda, do delirium, das alterações dos marcadores de lesão hepática, da orientação para balanço hídrico negativo, da insuficiência cardíaca, e conjugando POCUS em cada uma das situações clínicas de forma flexível e verificando o padrão do fluxo venoso em Doppler pulsado em territórios definidos (com janelas ecográficas bem definidas) obtemos informação para atuar equivalente àquela que obtemos com a ecocardiografia. Trata-se de colocar os sensores em vários pontos do sistema. Isto é entusiasmante, pois são muitas as aplicações para uma avaliação hemodinâmica com ênfase no componente venoso.

Alguns exemplos do uso de VExUS

Insuficiência Cardíaca Congestiva: como conseguimos avaliar excesso de fluídos?

A congestão hemodinâmica precede, em dias ou semanas, as manifestações clínicas [2]. O exame físico não ajuda em todos os casos, pois está demonstrado que há uma dissociação entre a resolução de sinais físicos de hipervolémia e a resolução da congestão em termos fisiológicos. Isto é de admirar? Basta pensar no doente em decúbito, em que os edemas dos membros inferiores se resolvem ao fim de 2-3 dias, mas esses não foram mais do que redistribuídos para a região sagrada, muito difícil de avaliar pelo exame objetivo. O excesso de fluidos à data de alta está associado a mais readmissões e mortalidade. Carecemos, assim, de uma avaliação mais objetiva do excesso de fluidos, que se põe quer no doente crítico após a fase de ressuscitação quer no doente hipervolémico com potencial de descompensação. E aqui o VExUS ajuda muito.

Lesão Renal Aguda ou Lesão Crónica Agudizada e Síndrome Cardiorrenal: Mito ou Realidade Clínica?

Talvez não se trate de mito e, sim, mais de um paradoxo.  Na lesão renal, somos levados muito a dar fluidos, mas também somos levados a não dar fluidos. As decisões são baseadas em assunções que, por vezes, nos enganam. Mas o rim é um órgão encapsulado e aqui a avaliação da congestão venosa é uma ferramenta poderosa. A avaliação da congestão venosa com o protocolo VExUS (Fig. 5) pode ajudar em muitas situações, principalmente onde as interações Rim-Coração podem ser melhor entendidas [3].

Figura 5. Protocolo VExUS Adaptado de POCUS 101

A avaliação Doppler não é exclusiva dos grandes aparelhos de Ecografia

Tudo o que tenho vindo a falar parece muito simples, repito-me muitas vezes, mas de facto o é em parte, mas por outro lado não o é. Sem os avanços tecnológicos do século XX e que continuam pelo século XXI, este post não faz nenhum sentido. Os aparelhos hand-held que temos ao dispor permitem avaliações ecocardiográficas e da VCI em 2D que fornecem importantes dados na avaliação hemodinâmica, muito embora a avaliação Doppler se tenha limitado nestes aparelhos ao Color. Entretanto, já não é bem assim. A avaliação Doppler com cor já é universal nos aparelhos hand-held, e muito recentemente o Doppler pulsado e contínuo, são já possíveis com aparelhos que andam de um lado para o outro no hospital até a cabeceira do doente, e que cabem dentro da “malinha de médico”. Não há, assim, desculpa para não calcular o DC ou avaliar as curvas de velocidade no sistema venoso para fazer uma avaliação hemodinâmica compreensiva, em qualquer ambiente hospitalar. Na figura 6, mostro como uso o Doppler Pulsado na Veia Hepática com o meu aparelho hand-held. Não há como voltar atrás.

Figura 6. Doppler Pulsado na Veia Hepática


A Hemodinâmica compreende todo o sistema circulatório, que engloba ambos braços arterial e venoso. Tradicionalmente, a Avaliação Hemodinâmica tem sido feita de forma invasiva, nomeadamente em unidades de cuidados intensivos. A ecografia focada no problema, ou seja, POCUS, veio alterar esta realidade, permitindo uma Avaliação Hemodinâmica Não Invasiva e que é possível em diversos ambientes clínicos fora dos cuidados intensivos.


Uma avaliação ecocardiográfica da componente cardíaca e arterial é crítica em estados de choque, onde o cálculo das resistências periféricas, a partir da determinação do débito cardíaco, pode ser determinante nas decisões de administrar fluidos e/ou fármacos vasoativos e inotrópicos.


No entanto, a congestão venosa tem sido desvalorizada na Avaliação Hemodinâmica, não por falta de conhecimento da fisiologia, mas por falta de formas de avaliar a componente venosa de forma mais precisa. Para além da avaliação da VCI, as janelas das veias hepáticas, porta e renais, com ecografia, numa perspetiva POCUS, completam o que já fazemos bem, para fazermos ainda melhor.


O desenvolvimento dos aparelhos portáteis com aplicações que vão além do modo 2D, criou uma nova era de POCUS hemodinâmico ao alcance de todos. Mas é necessário muito estudo e treino, sem esquecer as leis da física, a integração dessas leis nos sistemas biológicos (no espírito do Guyton), e, mais importante, avaliar os doentes na globalidade como já fazemos bem. E assim só pode ficar melhor.

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Referências

[1] Gaspar A, Azevedo P, Roncon-Albuquerque R Jr. Non-invasive hemodynamic evaluation by Doppler echocardiography. Rev Bras Ter Intensiva. 2018 Jul-Sept; 30(3):385-393. DOI: 10.5935/0103-507X.20180055. PMID: 30328992; PMCID: PMC6180473.


[2] Koratala A, Kazory A. Point of Care Ultrasonography for Objective Assessment of Heart Failure: Integration of Cardiac, Vascular, and Extravascular Determinants of Volume Status. Cardiorenal Med. 2021;11(1):5-17. DOI: 10.1159/000510732. Epub 2021 Jan 21. PMID: 33477143.


[3] Rola P, Miralles-Aguiar F, Argaiz E, Beaubien-Souligny W, Haycock K, Karimov T, Dinh VA, Spiegel R. Clinical applications of the venous excess ultrasound (VExUS) score: conceptual review and case series. Ultrasound J. 2021 Jun 19;13(1):32. DOI: 10.1186/s13089-021-00232-8. PMID: 34146184.


[4] Guyton, AC, Hall, JE. Textbook of medical physiology. 9th. ed. Philadelphia, Pennsylvania: W. B. Saunders Company, 1996.